O nome da cura da Aids é vida
Veriano Terto Jr.
Professor visitante no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e amigo do Ibase
Desde os anos 90, o Brasil tem sido reconhecido pela comunidade científica internacional como um país bem sucedido na luta contra o HIV/Aids. Os bons resultados que demonstram este sucesso residem tanto no acesso universal aos medicamentos antirretrovirais usados no tratamento da infecção pelo HIV, como pela forma aberta e ousada em enfrentar os temas tabus e estigmas relacionados à epidemia, tais como uso de drogas, prostituição, homossexualidade, entre outros, nas mensagens de prevenção.
Mais recentemente, no entanto, seguindo a onda de valores conservadores que parece avançar sobre a sociedade brasileira, as recentes campanhas governamentais de prevenção têm sofrido alguns revezes, como censuras do próprio governo e a adoção de um tom mais conservador ou distante dos avanços científicos na resposta ao HIV/Aids. Um exemplo é a última campanha de prevenção do governo municipal do Rio de Janeiro, lançada no Carnaval deste ano (2015). O slogan da campanha é: “Aids não tem cara e não
tem cura” e o que se vê é a repetição de estereótipos, propostas reacionárias, inclusive remetendo a tempos que muitos das pessoas mais afetadas pelo HIV nos anos 80 e o início dos 90 já teriam preferido esquecer.
Trata-se de slogan no mínimo de mau gosto, constrangedor, anacrônico e na contramão da ciência e das lutas por uma prevenção mais solidária, conforme foi a marca das campanhas de prevenção dos anos 90, por exemplo. O texto da campanha repete o já clichê que a Aids não tem cara e que o HIV não faz distinções de raça, classe, orientação sexual e gênero. No entanto, a campanha acaba propondo graves distinções sim, pois divide o mundo entre os doentes e os sãos, entre os “incuráveis” e os “saudáveis”, isto depois de Herbert Daniel tão bem demonstrar o quão estigmatizante e pouco produtivo é dividir o mundo entre os “sãos” e os “doentes” na resposta ao HIV (Vida antes da Morte, 1989). Como diria Betinho em Escritos Indignados (1991), depois dos soropositivos lutarem para conseguir uma melhor qualidade de vida, investirem no tratamento e na saúde, enfrentarem um número considerável de dificuldades para vencer o HIV, este tipo de campanha vem colocar todos os soropositivos no seu devido lugar, ou seja, aquele de doentes incuráveis.
É sabido que a Aids como doença não tem cura, se esta for pensada como a erradicação do HIV do corpo humano através de uma vacina ou medicamento. No entanto, os resultados das pesquisas científicas mais recentes demonstram que, se por um lado este tipo de cura ainda não existe, por outro os avanços no campo de vacinas terapêuticas e outras formas de tratamento, já apontam que a cura é um horizonte possível no qual se deve seguir investindo recursos humanos e financeiros. Assim, a aparente certeza que a Aids não teria cura, tende a ser cada vez mais uma meia verdade, o que torna o tema bem delicado para se colocar numa campanha como esta, e em especial no momento histórico que vivemos. O tema deveria ter sido mais bem debatido com cientistas, pessoas vivendo com HIV, movimento social, profissionais de saúde, entre outros, antes de ser abordado desta forma pela campanha em questão.
A partir dos avanços científicos e em contraponto aos tempos atuais de retrocessos políticos, não teria sido melhor uma campanha no positivo, conclamando indivíduos e grupos a se protegerem, a investir no cuidado, na participação, na solidariedade e que desta forma poderíamos apressar a descoberta da cura? Por que não resgatar a ousadia do Betinho, que no início dos anos 90, quando ainda dispúnhamos de tão poucos recursos efetivos para o tratamento da Aids, lançou o desafiante conceito de “cura”, o qual afirmava que a cura estava em investir na vida, na solidariedade, na participação, na coragem para alcançá-la? Conforme ele propunha: “De repente me dei conta de que a cura da Aids sempre havia existido, como possibilidade, antes mesmo de existir como anúncio do fato acontecido, e que seu nome era vida. Foi de repente, como tudo acontece” (O Dia da Cura, 1994).
Para agravar ainda mais a situação, chama a atenção a incongruência da campanha de Carnaval do Ministério da Saúde com aquela do município do Rio. Enquanto o primeiro estimula a testagem para o HIV e a importância do diagnóstico precoce, a do município carioca estimula o medo e o terror da Aids. Como fica a vida da população que recebe as duas mensagens? Se não tem cura, pra que testar? Esta é uma pergunta que a população poderia colocar e que os idealizadores das campanhas e gestores de saúde deveriam considerar.
Infelizmente, parece que até na Aids as tentativas de controle das pessoas através da promoção do medo tomam forma. Tem sido assim nas justificativas de combate ao terrorismo, nas políticas de segurança de pública, nas políticas econômicas do FMI e do Banco Central Europeu sobre o novo governo e a democracia na Grécia, entre outros diferentes exemplos de promoção do medo e parece que na Aids e em outras questões de saúde não está sendo diferente. Parecem se somar as mensagens propaladas pelo planeta que de alguma forma preconizam: tenha medo do muçulmano seu vizinho (que pode ter uma bomba), do africano negro imigrante (que pode ter ebola ou outra doença potencialmente infecciosa), de votar na esquerda em alguns países (e afundar ainda mais o seu país), do seu parceiro sexual que pode ser um soropositivo “perigoso” e “incurável” e assim por diante.
Abaixo seguem links para acessar o material das campanhas de carnaval da prefeitura e do Ministério da Saúde, assim como as críticas da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), organização fundada pelo Betinho em 1987 para contribuir na resposta aos desafios impostos pelo HIV/AIDS no Brasil.
Saiba mais
Abia destaca pontos positivos e negativos na Campanha do Carnaval 2015: http://abiaids.org.br/?p=27346
Abia divulga nota sobre a polêmica do barebacking: http://abiaids.org.br/?p=27338
Vídeo da Campanha da Secretaria Municipal de Saúde e a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual (Ceds), o debate sobre a camisinha: https://www.youtube.com/watch?v=k1I63EOH550