A democracia que queremos
Por Sandra Jouan
Do Ibase
O golpe parlamentar, midiático e judiciário que resultou no impeachment da Presidenta Dilma nos colocou diante de uma grave crise política, que resulta na derrota das forças democráticas, regressão de direitos e ampliação de uma onda conservadora e de violência no país.
Os movimentos sociais e sindicais, através de manifestações diversas, têm oferecido resistência às reformas impostas de forma arbitrária pelo atual governo. Retrocessos trabalhistas, previdenciários, econômicos e sociais vêm desmantelando as conquistas democráticas da Constituição de 88, fruto de muita luta do povo brasileiro. Entretanto essas resistências têm tido pouco impacto para conter as agendas retrógradas e regressivas, que retira e elimina direitos.
Neste contexto tramita no Congresso Nacional uma proposta de Reforma Política cujo projeto preliminar, apesar de contemplar algumas ideias resultantes de anos de discussão de um conjunto de forças sociais articuladas na Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, da qual o Ibase é parceiro, está muito aquém do que se considera uma reforma que amplie e aperfeiçoe a democracia brasileira. Democratizar o poder significa ir além de uma reforma eleitoral conjuntural e incapaz de alterar as desigualdades estruturantes da sociedade brasileira, que impedem a maioria da nossa população – mulheres, negros e negras, jovens, população LGBTI, indígenas – de participar efetivamente das decisões políticas do país.
Com o objetivo de ampliar a discussão da Reforma Política na conjuntura atual e disputar os rumos do Estado e da sociedade, a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político realizou no período de 17 a 19/04 um encontro onde participaram movimentos sociais, coletivos, grupos, organizações e ativistas do campo de esquerda e democrático da sociedade brasileira, para juntos fazerem uma reflexão e pensarem ações em torno dos rumos da construção de uma reforma radical do sistema político, visando uma democracia com justiça social e econômica no Brasil.
No primeiro dia, o debate foi em torno da temática da “Democracia, Reforma do Sistema Político e Economia” e se focou na questão de como a “democracia” se configura no Brasil a partir dos olhares da população negra, dos povos indígenas, mulheres e defensores do Estado laico, avaliando sua captura pelo poder econômico e o impacto dessas configurações nas propostas da Reforma do Sistema Político. No segundo dia, o primeiro painel foi sobre como avançar nas propostas de Reforma do Sistema Político a partir do acúmulo já construído pelos movimentos sociais em torno da questão, identificando divergências e novas questões que precisam ser incorporadas. Como último painel se discutiu qual Reforma do Sistema Político que se querer, tendo como base as discussões do painel anterior, identificando propostas, consensos, dissensos e questões a serem aprofundadas no próximo período visando a construção de uma proposta de reforma que articule todo o campo democrático.
Em linhas gerais a Plataforma tem o entendimento que o caráter do golpe, além de neoliberal, é também racista, misógino e reforça a formação patriarcal brasileira patrimonialista e machista, e isso está expresso não só na regressão de direitos e na mudança de estruturas políticas, mas, também, na liberação das forças conservadoras, fundamentalistas e de ódio.
Foi consenso entre os participantes do Encontro que a Plataforma deve buscar construir com outros sujeitos a articulação para o debate da Reforma do Sistema Político e das reformas estruturais, que no momento se expressam como lutas de resistência à regressão de direitos. Decidiu-se manter a amplitude da concepção do Sistema Político já elaborado pela Plataforma, incluindo as formas institucionalizadas de participação, de representação, e também a democratização de justiça e da comunicação, reforçando a necessidade de ampliação do debate junto aos mecanismos do Estado e da sociedade. Neste sentido a democracia direta ganha uma centralidade, buscando-se fortalecer o debate sobre o processo de democratização na vida cotidiana e também na expressão de movimentos sociais.
Como estratégia de ação a Plataforma definiu um plano restrito e outro mais amplo de atuação. No campo restrito a ideia é se posicionar publicamente como Plataforma sobre a amplitude do debate que está sendo desenvolvido no Congresso Nacional. Apesar de se ter entendimento da dificuldade de interceder junto a esta instância, metaforicamente a proposta é de “redução de danos”, ou seja, de acompanhamento sistemático e de divulgação do que está sendo discutido das pautas da Plataforma da Reforma Política e da concepção ampliada de Sistema Político e, também, de manter o estabelecimento do diálogo da Comissão Especial com os parlamentares, no sentido de defender as posições que foram construídas pela Plataforma.
No sentido mais amplo pensando na continuidade do projeto da Plataforma a estratégia é de se ampliar os debates que se precisa fazer e por outro lado territorializar o debate da Reforma Política. A proposta é que a reformulação do escopo geral e dos eixos do documento base da Plataforma seja construída com a participação ativa dos movimentos integrantes, incluindo os pontos apontados nas discussões do Encontro, implicando numa capilarização tanto no plano local, incluindo cidades e estados, como no plano nacional, com organizações que se proponham a estar juntas nesta proposta.
Com relação às mudanças discutidas sobre os eixos da Plataforma ficou claro a necessidade de se incluir o eixo da democracia econômica e ambiental, entendendo que a democracia do poder não pode prescindir da mudança do sistema econômico. O modelo de desenvolvimento que sempre esteve em curso em nosso país, cada vez mais concentrador, vem piorando com a entrega das riquezas nacionais aos monopólios estrangeiros (pré-sal, privatização da energia, portos etc).
Destacou-se a importância da inclusão da discussão sobre o Estado laico e o enfrentamento da intolerância religiosa, no sentido de se manter o fomento de uma cultura política democrática. Isso expressa, nesta linha da amplitude do debate, em construir e disseminar uma concepção de movimentos sociais com sujeitos políticos capazes, com as mobilizações sociais que promovem, de alterar a correlação de forças na sociedade. Exige dos movimentos e organizações da Plataforma trabalhar para que os partidos, os movimentos sindicais, as organizações políticas assumam esta perspectiva e reconheçam as distintas formas de lutas: legais, ilegais, massivas, de ocupação, de resistências, clandestinas e suas diferentes formas. Isto porque se entende que a criminalização dos movimentos sociais e das lideranças, em especial da juventude e dos movimentos de periferia, passa por uma aceitação da sociedade, o que inclui setores de esquerda organizados, de que esses movimentos lutam errado, que eles não são suficientemente políticos. A Plataforma está trazendo para si essa responsabilidade de enfrentar este debate, entendendo que dessa forma pode ajudar a aproximar os movimentos que atuam de forma autônoma, de forma radical, os movimentos que estão apartados desta construção do debate de reforma do sistema político.
Outro ponto apontado se refere à necessidade de capilarizar o debate. Para isso é importante que se ganhe corações e mentes da sociedade brasileira. Alguns pontos foram destacados nesta direção:
- Criar um documento com a síntese da Plataforma com ênfase nas propostas centrais, com uma linguagem de fácil entendimento para todos os segmentos sociais que se quer atrair para este debate.
- Organizar uma campanha massiva que exija a realização de um referendo para as reformas que estão sendo realizadas pelo governo. Essa campanha teria o objetivo de fomentar junto à população brasileira a reflexão sobre seu próprio poder de decisão, incluindo o debate da regressão de direitos;
- Manter ações de popularização do debate de todos os eixos da Plataforma sobre a democracia direta, participativa, representativa, democratização da informação, da comunicação e do sistema de justiça. A ideia é de se lançar esse debate em todos os espaços em que se tenha possibilidade de incidir com experiências inovadoras;
- Buscar uma maior aproximação da Plataforma com as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, muitos movimentos que compõe a Plataforma já fazem parte dessas frentes, na medida do possível buscar ações comuns. A Plataforma poderia pautar os debates da Reforma Política com a amplitude que defende nas lutas, nas manifestações, nos processos construídos pelas duas frentes.
Enfim, a Plataforma tem o entendimento da magnitude da crise e de sua longa duração para saída, mas também da fragilidade do campo da esquerda. Neste sentido para os militantes da Plataforma a reforma do sistema político hoje passa pela reconstrução da utopia democrática, a partir da crítica desse processo civilizatório que se vive, que é um processo capitalista, racista, patrimonialista e patriarcal. Fundamentar esta crítica pode dar base para se construir uma utopia democrática capaz de influenciar na construção de um campo político de esquerda, em bases mais amplas e mais radicais do que se atua hoje.
Confira a Carta aberta aos parlamentares sobre a proposta de Reforma Política