Especialista em pessoas
Por Ariadne Sá
Residente em Medicina de Família e Comunidade no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro.
“Obrigada, Dra. Espero que você fique bastante tempo aqui com a gente.”
Por muitos anos, o sistema público de saúde brasileiro esteve baseado no chamado modelo hospitalocêntrico. Recursos financeiros e humanos eram direcionados aos serviços hospitalares de internação e emergência por motivos políticos e culturais. Serviços especializados eram difíceis de acessar e estavam lotados por falta de estratégia nos fluxos de saúde.
“Mas você é especialista em quê? – Sou especialista em pessoas.”
Uma corrente da medicina em particular estava muito descontente com esse modelo: os médicos de família e comunidade. Essa especialidade foi deixada de lado por muitos anos, com um número reduzido de títulos e um certo preconceito disfarçado. Estes pregavam: para que gastar tanto tratando aquilo que se pode evitar? Era preciso transformar um sistema de saúde piramidal em um sistema que ligasse pessoas a pessoas de maneira eficiente e transparente.
“Queria fazer um check-up geral.”
Aos poucos, essas ideias foram ganhando força nos espaços públicos e o governo começou a comprar a ideia de que uma medicina mais próxima e mais humana é possível. Começa aí a Reforma da Atenção Primária. Os pacientes começam então a buscar atendimento e se interessar mais em sua própria saúde, mesmo na ausência da doença.
“Preciso de um ginecologista, um ortopedista, um gastro e um neurologista”
Essa reforma só se fez possível com a capacitação dos profissionais da atenção primária. Aos poucos, a imagem do médico do posto que só troca a receita dos remédios e só atende paciente marcado de 6 em 6 meses foi sendo substituída pela de um profissional polivalente, capaz de realizar pequenas cirurgias, pré-natal, saúde da mulher, do idoso, mental, entre diversas outras competências. Na posição de coordenador do cuidado, é responsável pelo paciente, mesmo quando o apoio de outros serviços se faz necessário, garantindo assim a integralidade da assistência.
“E quando eu volto? – Quando você precisar.”
Agendas mais flexíveis, capazes de acomodar encaixes e pequenas urgências são imprescindíveis na construção da autonomia e do empoderamento do paciente sobre a sua saúde. Por muitos anos, o paciente foi apenas um recipiente de cuidados médicos, ignorante e ignorado, sem poder de decisão. Isso é a verdadeira humanização do atendimento, enxergar um indivíduo como agente do seu próprio bem-estar e garantir que ele possa criar um vínculo de confiança com o profissional que o assiste.
“Perdi minha última consulta porque tava dando muito tiro na minha rua”
Enxergando além do processo de adoecimento como abre-alas da assistência em saúde, a corrente de medicina de família transcende esse conceito, observando a relevância de fatores não ligados à saúde diretamente e à dinâmica do paciente com o ambiente. Muitos dos que buscam os serviços de atenção primária residem em áreas extremamente castigadas pela violência e a guerra às drogas. Subemprego, pobreza, moradia, número de filhos, ambiente familiar, história de vida. É impressionante como essas informações podem ser preciosas e verdadeiras ferramentas de trabalho para o médico de família. É só perguntar.
“Trouxe um bolinho pra você, da festa da minha neta, a Julia. Espero que goste.”
– Manda um abraço de parabéns pra ela D. Elza?