Pela justiça de gênero, o fim da cultura patriarcal
Natasha Ísis
do Canal Ibase
Compartilhando o mesmo nome e ideais, as indianas Nandita Gandhi e Nandita Shah fundaram o Akshara Centre, uma ONG localizada em Mumbai que luta desde 1995 por uma sociedade com justiça de gênero. O que começou com uma pequena biblioteca para estudar a teoria feminista é atualmente um grande centro que promove campanhas, feiras e programas para disseminar a consciência de gênero e reduzir os alarmantes níveis de violência contra a mulher que são registrados na Índia. Para se ter uma ideia, segundo uma nova pesquisa feita pela Fundação Thomson Reuters, as mulheres indianas são discriminadas, maltratadas e até mortas em uma escala sem precedentes, o que posiciona o país como o pior para o sexo feminino entre as 20 maiores economias do mundo.
Para as fundadoras, o importante é não só ser uma alternativa e ponto de apoio para mulheres que sofrem abusos, mas também ir até os que não procuram informação ou ajuda. “As pessoas precisam ter a força e a convicção de que a violência não é algo certo e, portanto, eles devem entrar com processos, reclamar e exigir que a lei se cumpra”, diz Nandita Gandhi, que associa a cultura patriarcal, presente até mesmo no Poder Judiciário, à propagação da violência por todas as camadas da sociedade.
No entanto, o Akshara Centre deixa claro que não luta pela neutralidade de gênero. Para Gandhi e Shah, essa ideia não é justa, já que as mulheres sofreram por muito tempo e precisam agora de ações afirmativas e empoderamento. Especialmente para evitar o silêncio de muitas com relação à violência, o que só torna maior o problema. A partir dessa ideia surgiu a mais nova iniciativa da organização indiana: o website “Stand Up Against Violence”, que tem o objetivo de dar voz a essas mulheres de forma segura.
Durante a VII Plataforma Ibase tivemos a oportunidade de conversar com as fundadoras do Akshara Centre. Confira:
Canal Ibase: Como vocês entraram no movimento feminista?
Nandita Gandhi: Estávamos fazendo mestrado nos anos 80, época em que a Índia estava em ebulição. Dois grandes movimentos estavam acontecendo, o tribal e o dos dalits. Éramos a geração depois da Independência e as pessoas começaram a perceber que o desenvolvimento não estava ocorrendo da maneira que elas queriam. Então foi muito natural se envolver em assuntos sociais.
Os grupos feministas se uniram por conta de uma situação muito ruim. Uma jovem foi estuprada por dois policiais em uma área mais afastada, longe do centro de Bombaim. O processo se estendeu por oito anos até que a Suprema Corte decidiu que ela simplesmente não tinha sido estuprada. Foi péssimo. Os advogados fizeram rodar uma carta aberta que teve bastante repercussão. Nós, mulheres, nos sentimos ultrajadas e fomos para as ruas protestar. Esse foi o ponto de partida do que nós chamamos de segunda onda do movimento feminista na Índia. Começou com um movimento anti-estupro e culminou no Fórum Contra o Estupro que fizemos em Mumbai.
Canal Ibase: E o que levou à criação do Akshara Centre?
Nandita Gandhi: Sentimos que o único jeito de fazer as pessoas se informarem sobre a teoria feminista era construir um tipo de biblioteca, uma espécie de centro de informação. Não tínhamos nenhum dinheiro, então começamos o centro da minha casa. Foi bobo, eu sei! Mas é bom ser jovem e inocente. Então, depois de lutar por três anos, finalmente conseguimos um bom espaço e algum dinheiro. Começou assim o Movimento pelo Estudo Feminista. Não havia nenhum tipo de estudo de gênero no país, então buscamos ensinar porque era algo muito importante para o movimento feminista. Quando começamos a ideia de uma espécie de grupo de estudo, tudo simplesmente fluiu. As universidades não tinham os livros que nós tínhamos e logo no primeiro dia apareceram 40, 50 pessoas. É claro que era uma situação completamente diferente… Hoje em dia tudo se encontra no Google, mas naquela época a informação não estava disponível e era necessário que ela fosse espalhada. Então, começamos a trabalhar com as universidades também, a levar essas teorias para outros espaços. A nossa intenção era nos tornarmos uma alternativa. As pessoas podem vir até nós, mas nós também vamos até elas.
Canal Ibase: Que tipo de trabalho é realizado no Akshara Centre?
Nandita Gandhi: Quando olhamos para o nosso trabalho como um todo acho que, em primeiro lugar, podemos dizer que fazemos campanhas, participamos do movimento feminista, exigimos que a legislação seja colocada em prática e pedimos mudanças na lei. Em segundo lugar, trabalhamos contra a violência contra a mulher e, por último, trabalhamos com a juventude. Vamos até eles como parte do programa na universidade, conversamos sobre a consciência de gênero. O que procuramos fazer é ir até diferentes grupos e provocar mudanças na vida das pessoas e estimular a consciência de gênero. Aqui no Brasil vocês têm bastante essa “cultura do macho”. Nós não temos tanto isso na Índia, mas com certeza é uma cultura patriarcal, o que já é um grande problema e tentamos mudar.
Nandita Shah: Basicamente trabalhamos com mulheres, jovens mulheres e jovens homens. Temos muitos programas com jovens. Uma atividade que faz bastante sucesso é o estímulo a olhar para si mesmo e para o sistema de maneira crítica através de jogos, o que torna o método mais aceitável e popular. Fazemos muito disso em feiras de consciência de gênero que organizamos. Outra área importante é a construção de lideranças. Temos um programa de treinamento nas favelas para que as pessoas sintam que podem tomar conta dos seus próprios problemas em suas comunidades. Além disso, mantivemos a ideia da biblioteca. Hoje temos uma grande biblioteca onde as mulheres locais podem pegar livros emprestados e estudar a teoria feminista.
Canal Ibase: No que diz respeito à violência contra a mulher, as leis na Índia são boas?
Nandita Gandhi: Sabe, a Índia tem leis incríveis… Mas implementação zero. Então buscamos isso, que a lei seja cumprida. Temos advogados e muitas pessoas envolvidas que se informam sobre tudo, o que já existe, o que falta… Se é preciso mudar alguma coisa, entramos com petições, criamos projetos de lei e mandamos para o Parlamento. Na verdade, o problema real é a implementação. As leis são boas e a Constituição indiana é ótima, mas a polícia e o Judiciário não contribuem para o cumprimento da lei. Então para algumas pessoas a lei é inútil. É um trabalho sem fim – lutamos pela lei e depois pela implementação, depois por mais lei e mais implementação. Por exemplo: é preciso exigir que os policiais deem atenção a uma mulher que sofre abuso em casa. A mulher tem que insistir muito para registrar uma queixa. E quando o caso vai para o tribunal, os juízes dizem “ah, foi só uma vez? Ele promete não fazer de novo, né? Volte para casa”. Não! Temos que ficar em cima, exigir que a lei se cumpra em todos os níveis.
Canal Ibase: E como vocês veem esse movimento em comparação com outros países?
Nandita Gandhi: A principal diferença é que não queremos neutralidade de gênero nas nossas leis. Em países da Europa e nos Estados Unidos vemos que existe muito debate sobre isso. Acredito que isso é principalmente porque a sociedade desses países é o que chamamos de liberal. Na ideologia liberal as pessoas têm o direito de fazer e escolher o que quiserem e isso é ótimo, mas quando isso se transforma numa neutralidade de gênero surgem alguns problemas. Um bom exemplo é o que aconteceu há algum tempo no Reino Unido. Grupos feministas abriram cafés só para mulheres e um grupo de homens logo reclamou que eles não podiam ter um café só para homens, então, como as mulheres podem? Os cafés tiveram que ser fechados. Nós não acreditamos nessa lógica. As mulheres estiveram em desvantagem por muitos séculos e precisam de ações afirmativas para, como diz o nome, se afirmarem, se recuperarem e terem consciência da sua força.
Canal Ibase: O sistema de castas tem alguma influência na violência contra a mulher?
Nandita Shah: Com certeza. Não se pode dizer que não existe violência em alguma casta. O que se pode dizer é que as mulheres das castas mais baixas sofrem mais, isso porque os homens das castas mais elevadas estupram e matam essas mulheres. As vinganças são realizadas sobre o corpo das mulheres. Se alguma casta quer tomar algum tipo de ação contra uma outra, eles cometem algum tipo de violência contra essas mulheres.
Nandita Gandhi: O que procuramos fazer também é dar aos dalits (pessoas que pertencem à casta mais baixa) a consciência de que eles podem lutar contra isso. As pessoas precisam ter a força e a convicção de que a violência não é algo certo e, portanto, eles devem entrar com processos, reclamar e exigir que a lei se cumpra. Eles são a maioria e precisam se organizar novamente para lutar contra esse sistema. Em muitos lugares existe esse problema: a maioria não se mobiliza. Isso pode e precisa mudar.