Poderá o fórum se reinventar?
Por Cândido Grzybowski
De Túnis, na Tunísia
A Tunísia é resultado de uma história de muitas invasões, guerras, conquistas, colonizações e dominações imperialistas. É parte do grande território do Noroeste da África de hoje (Tunísia, Argélia, Marrocos, Saara Ocidental e Mauritânia) em que se expandiram os berbéres. Lá pelos 700 a.C., os fenícios, vindos pelo mar, criaram Cartago para controlar o comércio em ponto estratégico do Mediterrâneo, hoje parte da cidade de Túnis. Cartago se tornou a cidade mais rica e poderosa de então. Em sua expansão e conquista chegou às portas de Roma com Hannibal e seu exército com elefantes. O ciclo de guerras púnicas acabou quando Cartago foi derrotada e destruída. Mas, no mesmo lugar foi erguida a Cartago romana. A cidade romana também virou ruína e muitas outras conquistas violentas se seguiram ao longo dos séculos. Uma das mais marcantes, que dá a língua e religião atual, é a expansão e conquista árabe entre 700 e 800 de nossa era. São Luís, rei da França, líder de uma das cruzadas, morreu aí em meados do século XIII. Hoje existe uma basílica de Saint Louis no alto da colina de Cartago. Recentemente, para uma história de mais de três milênios, a Tunísia foi conquistada e colonizada pelo imperialismo francês. Tornou-se independente em 1956. Hoje é um dos principais pontos de partida dos migrantes africanos para o outro lado do Mediterrâneo, rumo à Itália, porta de entrada da Europa, em barcos precários e superlotados, com frequentes acidentes. Também é da Tunísia, dada a difícil situação econômica, que já partiram três mil jovens para se integrar no Estado Islâmico.
Esta história de encontros de civilizações e culturas, violentos no geral, de transformações e sínteses complexas na moldagem de um povo, gestou também a “Primavera Árabe”, dando origem à primeira democracia na região. O FSM veio até à Túnis, em 2013 e agora em 2015, para se conectar com as cidadanias da “Primavera Árabe”. Na verdade, os tunisianos já participam do Fórum desde a primeira edição em Porto Alegre, em 2001. Depois, foram ampliando a participação através do processo do Fórum Social do Magreb. Segundo Maher Hanin, do Fórum Tunisien pour les Droits Economiques et Sociaux (FIDES), um dos participantes desde o começo, foi o FSM que inspirou a criação de redes sociais na Tunísia, base da grande insurgência cidadã que derrubou a ditadura e implantou a democracia em 2011.
Esta história passada e recente da Tunísia tem muito a inspirar o FSM para se refundar. O Fórum, como seu lema mobilizador de “outro mundo é possível”, tornou-se o espaço de expressão das multifacetadas cidadanias que compõem o mundo. Surgiu com a perspectiva de alimentar uma nova cultura política, radicalmente democrática, de respeito à pluralidade e à diversidade sociocultural, mas se dando uma tarefa planetária de enfrentar o neoliberalismo, a globalização capitalista, o poder das grandes corporações, e de transformar o mundo. Trata-se de superar guerras e violências, conquistas e colonizações, dominações e imperialismos pela cidadania ativa planetária, sem nos matarmos uns aos outros. Queremos que todos os povos tenham o direito de existir e florescer sem imposições de fora, mas em solidariedade com todos os outros povos, como parte de uma cidadania do Planeta Terra, bem comum de todos. A Terra é de todos. E todos seres humanos, todos os povos, tem o mesmo e igual direito de nela viver e de dela extrair a vida Só assim construiremos sociedades democráticas diversas e vibrantes, justas, participativas e plenamente sustentáveis na relação com a biosfera e a natureza.
Para o FSM é vital se conectar as cidadanias locais emergentes no mundo, à sua história passada e às suas propostas e práticas de hoje, fortalecendo-as e as inspirando. Mas, ao mesmo tempo, dada a sua vocação planetária, é fundamental que o FSM se renove em tal processo, consiga ampliar a sua contribuição na direção da nova cultura política, se torne ainda mais excludente e diverso, com mais capacidade de incidência no poder a nível mundial. Claro, o FSM não gera ações cidadãs planetárias por si mesmo, são as cidadanias que o podem fazer. Mas o FSM deve ser um processo inspirador e incubador de iniciativas cidadãs planetárias cada vez mais impactantes. A mudança de paradigma civilizatório terá que se expressar no Estado/poder e na Economia/Mercado, mas só as diversas cidadanias profundamente enraizadas no local e com base em sua diversidade podem se dar tarefas de dimensões planetárias, de transformar a estrutura e processos hoje dominantes.
Este foi o tema de fundo do último debate que participei do FSM em Túnis. Foi na noite de 27, numa mesa de controvérsias, a terceira de uma série “Quel Monde se Prepare?” Os participantes da mesa representávamos diferentes inserções, pois estava o Maher Hanin (Tunísia/FIDES), Kamal (Marrocos/membro do comitê organizador do FSM), Stelios ( Grécia/Deputado europeu/Syriza), Cindy Wiesner (EUA/Grassroots Global Justice), Nouzka Skalli (Marrocos/deputada e ex ministra) e eu (Brasil/Ibase), mediados por Patrice Barrat (França/Bridge Initiative Internacional). Apesar da enormidade do espaço – um antigo cinema no centro de Túnis – o debate foi acompanhado só por uns cem participantes do FSM, dado a forte chuva, com ventos e o frio intenso. Mas o debate foi estimulante, mostrando que é possível organizar eventos no interior do Fórum que levantem desafios e questões estratégicas para a cidadania planetária.
Retenho aqui uma questão surgida no debate entre nós da mesa de controvérsia. Trata-se da questão do poder. Ficou particularmente clara nas considerações sobre a “revolução” na Tunísia e no caso grego: conquista-se o poder mas o poder e o Estado estão profundamente contaminados de dentro do país e de fora, limitando totalmente as opções de políticas e os processos de mudanças. Falou-se até em neoliberalismos que se diversificam, mas não mudam, como o liberalismo do Obama ou o liberalismo entre nós na América do Sul. Levantei isto como um grande desafio para o FSM. Afinal o poder, do mundial ao local, foi colonizado, privatizado e mercantilizado pelas grandes corporações econômicas e financeiras, fazendo políticas que priorizam os interesses da acumulação capitalista, passando por cima de soberanias e direitos mundo a fora. Como tarefa de cidadania temos que resgatar a política como bem comum e com isto transformar os poderes, os Estados, as instituições multilaterais, tornando-os bens comuns a serviço de direitos de todas e de todos, a serviço da democracia. Por isto, o caso grego ou o tunisiano ou de qualquer outro país em que a cidadania avança, além de constituirem um desafio real para a cidadania local, são um desafio para as cidadanias do mundo, pois tocam na essência da questão do poder que se impõem do mundial ao local, de cima para baixo. Na minha opinião, se o FSM não tiver esta sensibilidade e visão estratégica vai se exaurir e acabar.
Penso que chegamos a um momento crítico no FSM. Ele precisa de eventos e precisa girar o mundo para inspirar cidadanias locais e se inspirar. Mas precisa se reinventar para se alimentar estrategicamente da relação local-mundial-local, mudando o modo de se organizar e o processo, para que os diálogos sejam nesta direção e permitam as cidadanias se articular e agir com maior capacidade de incidência no poder. Descolonizar o poder supõe descolonizar nossas mentes e culturas políticas, talvez até aqui o maior resultado efetivo do FSM. Mas precisamos transformar isto em ação cidadã planetária, que supõe imaginário mobilizador e articulador, a busca de unidades possíveis na nossa imensa diversidade, a visão estratégica de onde incidir e como incidir para conquistas que possas significar trincheiras mundiais de cidadania num longo processo de transformação.
Enfim, o FSM precisa se assumir como processo capaz de gestar sujeitos coletivos que contribuam a contestar e a mudar a ordem existente. Será que seremos capazes de assumir tal tarefa? A invenção de 2001, em Porto Alegre, que surpreendeu o mundo, em seu desenvolvimento exige novas ousadias. É assim que o sinto e sei que em parte tenho uma responsabilidade. Voltei sem resolver dúvidas que levei. Mas me sinto reponsável pelo processo FSM, pois dá sentido ao meu atitivismo cidadão e aos compromissos que fui assumindo na vida.