Porto afunda e duas cidades ficam à deriva
Camila Nobrega e Rogério Daflon
Do Canal Ibase
Desde a meia-noite e 20 minutos do dia 28 de março, a rotina de duas cidades do Norte do país mudou radicalmente. Fora dos holofotes, a Ilha de Santana e o município de Pedra Branca do Amapari, no Amapá, vivem em silêncio um drama causado pelo desmoronamento, no leito do Rio Amazonas, de boa parte do Porto de Santana, uma área de aproximadamente 17.000 m² (195×95), administrada pela mineradora Anglo American. Na ocasião, três trabalhadores morreram. E três continuam desaparecidos. A tragédia ocorreu em meio à discussão acalorada sobre o Novo Código da Mineração, cujo texto está sendo concluído para ser encaminhado ao Congresso Nacional, em forma de projeto de lei ou medida provisória. A ausência de pontos que regulem a segurança e as condições de trabalho está entre as principais críticas ao novo marco legal, expostas por movimentos sociais em um documento entregue aos ministérios da Casa Civil e de Minas e Energia. Na manhã desta sexta-feira, dia 19 de abril, as entidades estiveram reunidas em Brasília com representantes dos dois órgãos para dar continuidade a uma longa negociação que pede a inclusão de sete temas no documento, que sequer foi apresentado à sociedade na íntegra até o momento.
O acidente no porto administrado pela Anglo American, no Amapá, expôs algumas fragilidades do setor que não se restringem à empresa. Os problemas sociais e ambientais causados no local são imensos. Como, de acordo com a própria empresa, 90% da economia de Pedra Branca giram em torno da produção de minério para a própria companhia, mais de 1.600 operários estão sob a ameaça de desemprego.
– Vai ter muita mudança, e a gente se preocupa porque não sabe o que vai acontecer – disse, por telefone, de Pedra Branca do Amapari, o vendedor de joias José Pereira. – Eu me mudei do Mato Grosso para cá, porque vim atrás do movimento das minas.
Como José Pereira, muita gente foi atrás do movimento das minas, em um fluxo que se repete em várias cidades do país. Pedra Branca testemunhou um crescimento populacional de 168% de 2000 a 2010 segundo o Censo Demográfico do IBGE. Um salto de 4009 para 10.772 pessoas. A estimativa é de que, atualmente, cerca de 13 mil pessoas morem no lugar. Para se ter uma ideia, a média do crescimento populacional das cidades brasileiras é de 1,17%. Mas pode haver um freio nesse fluxo. José Pereira conta que sua filha e o marido dela pediram demissão do emprego em Mato Grosso, a fim de começar vida nova em Pedra Branca.
– Agora, desempregados, os dois estão bem receosos – disse ele.
O mercado em Pedra Branca está aquecido. Um morador que não quis se identificar contou, também pelo telefone, que um operador de máquina, por exemplo, chega a ganhar quase R$ 4 mil de salário na mina da cidade. Embora com infraestrutura precária – há poucos postos de saúde, esgoto a céu aberto e um número reduzido de escolas – o incentivo financeiro atrai brasileiros diferentes sotaques. O inchaço da cidade e a dependência de apenas um ativo econômico já resultariam em problemas sociais. Esse impacto só foi reforçado pelo acidente na Ilha de Santana. Embora causadora de sérios impactos, a mineradora se tornou vital para a sobrevivência da cidade, deixando aberta uma contradição que se multiplica em diversos locais do país. A insegurança no pequeno município amapaense ainda aumenta porque a Anglo American na região vendeu (antes do acidente) 70% das ações da mina de ferro do Amapá à companhia Zamin Ferrous. O valor ainda não foi divulgado, mas a Anglo American adquiriu a mina por 5,5 bilhões de dólares, em 2008.
A assessoria de imprensa da mineradora informa que a Anglo só sairá do Amapá depois de todos os problemas do acidente resolvidos. O prazo é de quatro meses; com certeza, o tempo é ínfimo diante da dimensão da tragédia. Sobre a possibilidade de demissões no local, a empresa negou, e afirmou que ainda não há decisão nesse sentido. Por enquanto, de acordo com a Anglo American, a produção não foi suspensa, embora o desmoronamento do porto tenha paralisado o embarque do produto e esteja aumentando apenas o estoque na mina. A companhia afirmou que as famílias dos operários mortos no acidente estão recebendo acompanhamento. Como o acidente foi num porto e o caso vai ficar na jurisdição da Marinha, ficou a cargo do Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar as causas do acidente. A Polícia Civil local, por sua vez, está fazendo uma perícia técnica.
Enquanto a Anglo American afirma que a investigação interna da empresa não apontou danos ambientais até o momento, órgãos públicos que estão apurando as causas e consequências do acidente afirmam que os impactos são grandes e estão ainda em fase de cálculo. O primeiro relatório do Instituto do Meio Ambiente e Ordenamento Territorial do Amapá (Imap), que aplicou multa à empresa de R$ 20 milhões, já contém números impressionantes. O relatório conclui que uma área de 17 mil metros quadrados, em que era armazenado e embarcado o minério, desabou sobre o leito do Rio Amazonas. Submergiram com a terra (92 mil metros cúbicos de solo) máquinas, escritórios e 20 mil toneladas de minério de ferro.
O documento da entidade aponta como prováveis causas do acidente os seguintes fatores: a estrutura portuária muito antiga, já que o porto foi inaugurado em 1956 e a falta de impermeabilização do solo por parte da empresa, apesar do peso concentrado nele. Estes fatores se combinaram com a adiantada erosão causada por correntes fluviais e pela supressão da mata ciliar.
Críticas à nova legislação
O acidente só acirrou o debate em torno do Novo Código da Mineração. Na avaliação de pesquisadores e especialistas, o documento é essencialmente voltado para o crescimento desse segmento. A proposta do governo é alavancar a economia da indústria extrativa da mineração, cuja atividade representa 4,1% do PIB do país. Dados do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) mostram que a produção do setor cresceu 550% entre 2001 e 2011. Esse caráter desenvolvimentista do código, porém, deixa de lado as questões humanas e ambientais relacionadas ao boom da atividade. Autor do documento “Os dilemas do código da mineração”, Carlos Bittencourt, pesquisador do Observatório do Pré-Sal, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), diz que o acidente de Santana trouxe à tona as condições da mineração do país.
Nesta sexta-feira (19 de abril), ele está com um grupo de entidades da sociedade civil em Brasília, para uma reunião com os ministérios da Casa Civil e de Minas e Energia. O objetivo é justamente acrescentar ao código questões como segurança do trabalho e preservação do meio ambiente. Um documento preparado por diversas entidades, entre elas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Movimento Sem-Terra (MST), a Articulação dos Povos Indígenas (APIB) e a Justiça nos Trilhos, e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), além do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), reivindica a inclusão de sete pontos debate. Os temas são Democracia e Transparência, para garantir apresentação das propostas de governo à sociedade civil, com consultas públicas, o direito de comunidades procuradas por empreendimentos minerários dizerem “não”, direitos dos trabalhadores, instituição de taxas máximas de extração, baseadas nos limites do recurso no país, planos de fechamento de minas, terras indígenas e a definição de áreas livres de mineração no Brasil.
– Há países vizinhos, como o Peru, que já incluíram esses itens no código – acrescenta Bitencourt, lembrando que, até agora, o texto não foi disponibilizado para consulta pública. – Esse debate é urgente no país.
Segundo os dados mais recentes do banco de informações do Ministério da Previdência Social, o Dataprev, compilados pelo economista Iderley Colombini, do Ibase, especialmente para esta reportagem, apontam que, em 2011, houve 6.635 acidentes com trabalhadores da indústria extrativa. O total de acidentes com trabalhadores do país naquele ano foi de 711.164. Os números relativos àquele ano, porém, não têm apontadas as taxas de incidência, ou seja, o número de acidentes por cada mil trabalhadores, por exemplo. O último ano em que esse dado aparece de forma relativizada é 2007, quando houve uma incidência média de 20,90 acidentes para cada mil trabalhadores do país. Olhando apenas para os dados da indústria extrativa, no entanto, os números são bem mais alarmantes. Só no caso da extração de minério de ferro, foram 37,72 acidentes a cada mil trabalhadores, índice que representa quase o dobro da média nacional. E as estatísticas pioram muito em outras áreas da mineração, como extração de minério de metais preciosos. Nesse caso, o índice é de 89,72. No caso da extração de metais não metálicos que não estão especificados na tabela o cálculo chega a 106,68.
O engenheiro pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Bruno Milanez, especialista em mineração, concorda que o debate sobre a nova legislação precisa ser ampliado. Segundo ele, os impactos sociais e ambientais do setor são complexos e nem sempre são levados em conta.
– A renda dos trabalhadores na maioria dos casos aumenta com a chegada das mineradoras. Mas até que ponto as empresas contribuem para desenvolver os municípios? É preciso olhar caso a caso, porque há situações em que as condições de vida, como saneamento, saúde, entre outros, são péssimas. O maior incômodo sobre o novo código é que ele não traz esses problemas. E não olha para os acidentes envolvendo trabalhadores. O foco da nova legislação são os royalties e o processo de licenciamento.
Milanez apontou ainda o que ele chama de monotonização da economia (quando a economia das cidades fica gira em torno de apenas um setor, ficando dependente dele) como um problema recorrente na mineração. Como aconteceu com a Anglo American em Pedra Branca do Amapari, dezenas de cidades surgem por conta da chegada de empreendimentos. E são elas que, anos depois, tornam-se municípios fantasmas, após a saída das companhias.
Amelia Gonzalez
19 de abril de 2013 @ 19:53
Muito boa reportagem. E muito bom que o Ibase esteja recuperando esse papel, como organização atenta às questões sociais sobretudo de uma parte do país onde a mídia do Sul/Sudeste, em geral , não chega. Já imaginaram o Betinho com uma internet nas mãos?
Priscila Iglesias
19 de abril de 2013 @ 23:02
O pesquisador tocou num ponto muito importante, que em muitos casos não fica claro: a contribuição da empresa para o desenvolvimento efetivo do município.Lembro que o governo municipal também deve ser responsabilizado por este desenvolvimento, inclusive por receber recursos advindos das atividades (royalties, impostos, etc).
ALIRIO PEREIRA FILHO
22 de abril de 2013 @ 12:10
O atual sistema economico pressupõe como mais importante o lucro e acumulação do capital, não a preservação do meio ambiente e o bem estar das pessoas.
Enquanto a elite das classes dominantes capitalistas estiverem ditando as regras, teremos eventos dessa ordem e também legislações evoluindo lentamente. A democracia pressupõe a participação e prevalescimento da opinião e benefício da maioria.
Igor Rodrigues
3 de maio de 2013 @ 22:12
Excelente reportagem;
Mas uns pontos que não minha opinião chega a ser ate um certo cinismo.
A segurança do trabalhador é resguardada pela CLT e as mineradoras tem que respeitar o código ambiental vigente no nosso país.
Tudo bem que as leis tem suas brechas mas não justifica só a partir do novo código da mineração cumprirem muitas dessas leis que já estão pre-estabelecidas. Mas se é para melhorar, que criem mais itens para este código.
Agora um coisa que achei essencial foi a da questão social pois cidades dependentes de apenas uma unica empresa ficam sucateadas depois que a atividade exercida é abandonada.
Temos que conseguir um forma que fique um legado, como saúde, recuperação do meio ambiente, infra-estrutura, saneamento básico e principalmente investir na educação da região.
Para que com o fim da atividade a situação seja menos traumática para o que ficam e que tenham condição de seguir com um vida longe da miséria.
Pode parecer utópico mas necessário.