Repórteres Sem Fronteiras fixa escritório no Rio de Janeiro e fala sobre problemas da liberdade de expressão
Por Pedro Martins
do Canal Ibase
A Ong Repórteres Sem Fronteiras estebeleceu recentemente seu escritório no Rio de Janeiro. A sede é responsável pela análise de toda a zona da América Latina envolvendo violações ao trabalho de jornalistas, direito à livre informação e também análise sobre o quadro legislativo dos países da região.
Atualmente algumas situações são alarmantes, como o alto número de jornalistas mortos no México e em Honduras. No Brasil, o número de mortes tem crescido e o país ocupa a 104ª posição no ranking de liberdade de expressão da entidade. Com muito trabalho pela frente, Emanuel Colombié e Artur Romeu conversaram com o Canal Ibase apontando os principais desafios a serem enfrentados.

Material de divulgação
Canal Ibase: Há quanto tempo os Repórteres Sem Fronteiras desenvolvem o trabalho na América Latina? Qual a avaliação deste período?
Emanuel: Trabalhamos na zona da América Latina desde o começo da ONG, que já tem 30 anos de existência. Temos esse trabalho há muitos anos, só que antes tinha uma pessoa lá em Paris cuidando da zona. Lá tem uma equipe de cerca de 30 pessoas, com chefes de zonas geográficas e até o ano passado não tinha ninguém aqui presente no continente. Então, o trabalho que fazemos aqui era feito por alguém lá de Paris que viajava de vez em quando para o continente. A ideia de ter o escritório fixo é de estar mais presente no local, participar de eventos e mostrarmos melhor nossa presença aqui.
Canal Ibase: E a opção por ter uma presença fixa e ser no Brasil vem de alguma avaliação política acerca dessa necessidade? Que elementos foram avaliados para estabelecer o escritório fixo?
Emanuel: Como falei, o Brasil é um país imenso, um continente, e a gente precisava estar mais presente aqui para poder encontrar mais pessoas, estar com todas essas pessoas que podemos ajudar nessa parte de advocacy acerca dos temas que defendemos. Além disso, ter a possibilidade de viajar, de participar de conferências e eventos dentro do estado do Rio de Janeiro e fora também. Não tem uma razão política específica para nossa presença aqui, é mais uma estratégia de visibilidade a longo prazo que vamos desenvolver.
Canal Ibase: Existe uma diversidade muito grande entre os países da América Latina e um histórico também grande de ditaduras em alguns países. Neste cenário, quais os principais problemas que vocês avaliam para o trabalho dos jornalistas e circulação de informação nesses países?
Emanuel: Infelizmente não tem só um problema, tem vários problemas. Cada país da zona tem sua história e existem muitas histórias de violências, de ditaduras pesadas por aqui. Entre outros problemas importantes, tem a questão dos assassinatos de jornalistas. Temos um comunicado sobre os assassinatos de jornalistas no continente, já temos mais de 20 jornalistas assassinados (em 2016). Isso vem da violência estrutural desses países, como, por exemplo, na América Central, onde temos países como Honduras, Guatemala, El Salvador, e também no México (que é na América do Norte), em que a presença do crime organizado junto com a corrupção dos políticos cria um ambiente de trabalho muito complicado para os jornalistas, sobretudo a jornalistas que cobrem assuntos relacionados à corrupção e a violência dos cartéis e outros grupos criminosos. Isso vem junto com um clima de impunidade global que observamos em quase todos os países da zona. Quando tem um assassinato, uma agressão ou qualquer tipo de violência contra jornalistas, a justiça local não faz o trabalho que deveria fazer. Cria-se um círculo vicioso de desconsideração da profissão, que, junto com a falta de mecanismos de proteção ao jornalista, produz uma situação catastrófica, a da autocensura e um ambiente de temor. Tem muitos jornalistas que até hoje não podem trabalhar de maneira normal e serena, em particular nessa zona da América do Norte e Central. Os piores países são México, Honduras e até Colômbia. Em Colômbia, Guatemala e El Salvador, trabalhar como jornalista é mais do que complicado.
Artur: O Repórteres Sem Fronteiras tem muito a ver com essa questão de proteção aos jornalistas, então é um tema que a gente trabalha muito e a América Latina é uma região extremamente problemática nesse sentido, mais do que as pessoas imaginam. O México é talvez o caso mais conhecido, porque vem nos últimos 10, 15 anos batendo recordes de assassinatos de jornalistas na região e até em nível global é um país que surpreende. Mas a questão de proteção aos jornalistas não é a única área de atuação da Repórteres Sem Fronteiras, que também atua analisando quadros legislativos, por exemplo, analisando novas leis que poderiam melhorar ou piorar a liberdade de informação seja na rede, seja na radiodifusão. Enfim, leis que coloquem o risco de uma censura prévia ou mesmo que facilitem a perseguição e o assédio jurídico legal dos jornalistas nesses países. É uma questão que a gente trabalha também a da penalização dos delitos de imprensa, como a difamação e calúnia, que ainda são assim em vários países da América Latina e no Brasil também. Jornalistas podem sofrer processos criminais pelo que escrevem. Isso está completamente contra as normas internacionais de liberdade de expressão. Além disso, tem também a concentração de propriedade dos meios de comunicação, que, na América Latina, em grande parte dos países, o nível de propriedade das concessões de rádio e televisão é muito concentrado. O Brasil é muito ruim, e Argentina, Chile, Venezuela e México também são países onde isso acontece.
No ano passado, a RSF fez uma levantamento sobre a propriedade dos meios de comunicação na Colômbia para alertar para as consequências desse tipo de limitação à pluralidade e o fato de grandes meios de comunicação de massa estarem nas mãos de poucos grupos, comprometendo o pluralismo de vozes na sociedade. Isso é definitivamente um dos grandes problemas na América Latina.
Canal Ibase: Como vocês avaliam que essa concentração dos meios de comunicação pode colaborar para casos de violência contra jornalistas e limitar a liberdade de expressão?
Artur: A questão da grande concentração dos meios de comunicação tem a ver com o acesso ao direito à comunicação. Não se trata de uma violência física, mas de não acessar os meios de comunicação, de não poder transmitir ideias, pensamentos e opiniões. É outro tipo de violência, a violência institucional. A gente vê até como as agências reguladoras lidam com a questão, como as rádios comunitárias passam a ser praticamente combatidas institucionalmente com confisco e destruição de equipamentos, prisão de comunicadores. É todo um nível de pressão institucional que pode se configurar como uma violência.
Emanuel: A primeira consequência é uma falta de pluralidade, de diversidade de informação e opinião na imprensa. Observamos sobre a crise política do Brasil, no caso do impeachment, sem nomear alguém, parecia óbvio nesse período que a maioria dos meios de comunicação não fazia o trabalho correto de maneira objetiva. Todo mundo sabe que a base de um bom trabalho jornalístico é trabalhar com objetividade, com os fatos. Pode fazer alguma análise política, mas isso é editorial, não é o jornalismo. A consequência disso é que a informação que chega ao leitor final é influenciada por interesses privados. Podem ser interesses políticos, podem ser interesses industriais, pode ser o coronelismo eletrônico, podem ser interesses religiosos, algo importante no Brasil e na América Latina. O problema é que essa informação, que deveria chegar da maneira mais objetiva possível, chega totalmente influenciada. Os próprios jornalistas desses meios de comunicação não sabem que estão trabalhando com essa influência. Não é visível para os dois lados. Falta uma pedagogia para a audiência, para que entendam que uma notícia que vai ser lida pode ter sido influenciada pelos mais altos níveis do poder. Essa falta de pluralidade é muito perigosa.
Canal Ibase: No último período tivemos alguns avanços na América Latina acerca de leis de comunicação, como, por exemplo, a Lei de Meios na Argentina e no Uruguai e a lei que criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Com o avanço de governos conservadores, parece que esse é o primeiro ponto a ser atacado, como fez Macri com 3 decretos que inviabilizaram a Lei de Meios na Argentina. Como vocês avaliam essa situação?
Emanuel: Estamos até agora observando o que está acontecendo na Argentina e estamos preocupados com a maneira utilizada para impor essas medidas, por meio de decretos. Não teve um debate junto à sociedade civil, com experts sobre este tema tão importante. É uma preocupação grande, porque essa situação pode fortalecer a concentração das mídias.
Mas em cada país temos uma história diferente. O problema é que temos algumas leis que são boas no papel mas que na realidade não são aplicadas de maneira efetiva por causa da corrupção. A corrupção é um tema comum à zona inteira que monitoramos. Realmente são poucos países que não temos em nível local a corrupção e um bom funcionamento das leis e da justiça.
Artur: O desmantelamento da Lei de Meios na Argentina é muito ruim. A gente via com certo otimismo porque era uma lei construída com os atores que fazem parte deste debate. Fizeram anos de debates e fórum para chegar a um projeto. Chegou-se a um projeto interessante e começou a se aplicar. Pelo nível enorme de polarização que já se desenhava na Argentina, a lei começa a ser utilizada pela oposição para criticar e dizer que há um cerceamento de liberdade de expressão por parte do governo Kirchner. Aquilo vira uma disputa política, sendo que a lei carregava em si questões fundamentais e até inovadoras. A própria lei do Uruguai puxa muita coisa da lei da Argentina, como a divisão do espectro entre setor público, privado e sem fins lucrativos. No Equador, a Lei Orgânica de comunicação vai fazer três anos. A RSF estava bem otimista no início, mas a maneira como ela tem sido aplicada pelos órgãos reguladores, tem nos levado a rever a posição pois passa a haver uma instrumentalização sobre a lei de acordo com o governo em questão e isso se torna uma coisa perigosa.
No Brasil, não só a lei que cria a EBC, mas a Lei de Acesso à Informação e o Marco Civil da Internet são questões que a gente tenta acompanhar. Houve uma tendência positiva nesse ciclo de governos progressistas da América Latina, mas se não estão acontecendo ou para onde vão é difícil avaliar. Só vendo o processo.
Canal Ibase: Em levantamentos recentes, pode-se notar que a maior parte dos casos de agressão a jornalistas no Brasil é praticada por agentes do Estado, em sua imensa maioria policiais. Como vocês analisam essa questão?
Emanuel: Esse trabalho de monitoramento é muito difícil, ele tem várias fontes de informações e nem todas são boas. Tem os ministérios, que não consideramos como fonte confiável. Tem um trabalho da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo investigativo), que consideramos bom, durante os protestos. Infelizmente desde 2013 tem dados de agressões a jornalistas durante os protestos e boa parte vinha da polícia, mas não podemos dizer que a totalidade vinha da polícia, porque tem casos de agressões por parte dos manifestantes. Ou são pessoas que aproveitam este momento de tensão para ir e agredir. Temos alguns casos de jornalistas nacionais que foram identificados como representantes do poder midiático e se tornaram alvos para algumas pessoas violentas. É verdade que Polícia Militar é um dos primeiros agressores, mas infelizmente não é o único.
Artur: Teve um relatório feito por um grupo de trabalho de vários ministérios, onde eles reconhecem o papel das autoridades policiais como agressoras em muitas situações. Então, é um fato reconhecido que, muitas vezes a segurança dos jornalistas é colocada em risco pelos próprios agentes do Estado.
Canal Ibase: Uma das questões levantadas durante as manifestações de 2013 era de que a linha editorial da mídia empresarial estaria colocando os profissionais em risco. Como vocês vêem isso?
Artur: Eu avalio que existe algo mais palpável, que é a falta de equipamentos de seguranças para os jornalistas nessas empresas. Algumas começam a dar atenção para isso. Mas no começo das manifestações em 2013 e mesmo no caso da morte do Santiago (cinegrafista da Bandeirantes morto ao ser atingido por um rojão) já em 2014, ele não tinha um capacete. Isso aconteceu depois de um cinegrafista da mesma Bandeirantes ter sido morto filmando um tiroteio numa favela da cidade. Acho que a responsabilidade desses meios tem mais a ver com a questão de equipamentos e protocolos de segurança. Acho que seria uma injustiça dizer que pela linha editorial do jornal você coloca o jornalista em risco porque quando ele vai cobrir um assunto as pessoas discordam da opinião do jornal. Eu acho um pouco perigoso.
Emanuel: Isso tem a ver com a falta de valorização da profissão, seja no Brasil ou fora daqui também. É uma falta de pedagogia, falta de lembrar qual é o papel social do jornalista. E isso é alimentado pela impunidade. Um cara com uma câmera fotográfica é um alvo facílimo. Isso é um desastre, pois só se tenta cobrar e mostrar o que está acontecendo.
Canal Ibase: Vocês avaliam que uma comunicação mais plural e diversa, com o fortalecimento do setor público e sem fins lucrativos, poderia ajudar na valorização do trabalho do jornalista?
Emanuel: No Brasil existe um paradoxo, pois existe grande concentração, mas também tem uma diversidade interessante. Só que não tem visibilidade porque os grandes meios de comunicação são tão gigantes que não deixam. É uma conformação histórica. Tem nessa questão o papel da sociedade civil e a vontade política do Estado para que a situação não seja assim. Jornalistas que trabalham em zonas afastadas têm medo de trabalhar porque sabem que os poderes locais não vão ajudá-los e essa impunidade é terrível.
Entre outras recomendações que os repórteres sem fronteiras fazem para o Brasil é a criação de um Observatório das Violências contra Jornalistas. Um espaço independente dos poderes políticos. Isso parece ser algo imprescindível para o país. É muito importante ter um órgão que comunique publicamente os casos observados para ter a dimensão correta. E também porque tem muitos casos que somem.
Artur: A valorização da comunicação pública e comunitária é um caminho importante para desenvolver e melhorar a qualidade da informação e a liberdade de expressão no Brasil. A lei da EBC, por exemplo, é importante, mas vemos o governo interino tentando tirar o Ricardo Melo (presidente da EBC) e também sinalizando com medidas que podem desmantelar a empresa. Isso tudo é muito negativo, é um retrocesso.
Canal Ibase: Muitos comunicadores alternativos, sejam blogueiros, radialistas comunitários, dentre tantos outros estão expostos a ameaças e violências. Vocês também lidam com esses casos? A atuação da RSF vai além dos jornalistas profissionais?
Emanuel: Lidamos da mesma maneira com um caso de jornalista agredido ou de blogueiro, fotógrafo etc. Se olhar o que fazemos nessa zona, defendemos muitos casos de jornalistas independentes, blogueiros e jornalistas investigativos. Mais da metade dos casos que defendemos não são de jornalistas. Até porque estes são mais vulneráveis e necessitam de mais apoio. Também tem os jornalistas de oposição. Bolívia e Equador, por exemplo, perseguem muito os jornalistas de oposição, que são pequenos e independentes.